Meu pensamento vagueia, às vezes
sinto como se o que passei fosse apenas uma ilusão, lembranças antigas me vêm e
me fazem sofrer. Sofrer?, Sim sofrer, as dores me consomem. As dores causadas
pelo descaso de quem deveria ter cuidado de mim.
Meu nome é primeiro molar
inferior esquerdo, mais conhecido por 36, isso, doravante serei apenas um
número: 36.
Quando nasci, cheguei como todos
os novatos: cheio de esperança, de certeza que teria uma vida feliz, seria bem
cuidado, viveria limpo, receberia flúor, teria um carinho de um fio dental
sendo passado em meus lados. Vocês não imaginam como é gostoso um fio dental
roçando na face mesial ou distal de um dente, dá uma coceirinha gostosa, mas
isso, eu senti apenas uma vez.
Sendo eu um elemento dental
importante, não que os outros não o sejam, mas reconheço a minha importância,
pois sou também conhecido como chave de oclusão. Não é à toa que eu e meu irmão
– o 46 – somos os primeiros elementos permanentes a surgir na boca da criança,
nós somos a garantia de uma boa oclusão, mas para realizarmos nosso trabalho
com eficiência precisamos de cuidados básicos e simples, ou seja precisamos de higiene.
Confesso que fui um pouquinho
prematuro, talvez com a pressa de começar meu trabalho, cheguei uns dias antes
de meu irmão, então pude vê-lo erupcionando, rompendo a gengiva, radiante,
também cheio de esperança, de sonhos de que teria uma vida feliz e contribuiria
para a saúde do corpo onde nascera. Mas em poucos dias aconteceu algo estranho,
inesperado por nós. Algumas bactérias se alojaram nas cicatrículas e fissuras
de meu irmão, ele ficou esperando por uma escova que não veio, e as bactérias
grudaram e começaram a aumentar, a multiplicarem-se como uma praga, sufocando
meu irmão. Pobre 46 começou a sentir-se doente, a gengiva que o protegia ficou
vermelha, começou a sangrar, ele esperando por socorro que não chega, continuou
sem receber um banho decente. Em poucos dias seu quadro se agravou, a infecção
atingiu o periodonto onde ele se alojava, sentia-se cada vez mais fraco, as
dores eram terríveis.
Eu do meu lugar via o sofrimento
do 46 sem nada poder fazer, sofria junto torcendo por sua recuperação, de repente,
uma luz forte veio sobre nós, uma agulha penetrou na gengiva próximo ao 46, e
outra e mais outra agulha, a dor parou, 46 ficou esquisito, parecia dopado. Eu fiquei
a observar curioso e temeroso, seria a cura? Teriam resolvido cuidar do meu
irmão? Que nada, de repente o vi ser pego por uma ferramenta e violentamente
arrancado de sua morada deixando apenas um buraco e o sangue que jorrava do
mesmo. Meu irmão pagou com a vida o descaso de uma pessoa que não lhe deu o
devido valor.
Agora o medo me domina, já não
sinto alegria, a certeza está nebulosa, não confio mais no futuro. Começo a
sentir coisas estranhas, talvez seja apenas o pavor que toma conta de mim, pois
algumas bactérias, que a meu ver são verdadeiros monstros aproximam-se, começam
a invadir minhas cicatrículas e fissuras. Terei eu o mesmo destino? Serei violentamente
arrancado do meu lugar? Quando entenderão a importância de um dente? Quando nos
verão como órgão que somos? Não somos descartáveis, sem nós todo o organismo
sofre. Mas até que aprendam isso, o que me resta é o medo e meus lamentos.
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